Artigo originalmente publicado em Jornal da Ciência
No Brasil, até o momento, mantendo e aperfeiçoando o vestibular, temos praticado uma grave omissão.
Deixamos que processos sociais, em sua maioria espúrios e excludentes, predominem sobre o talento das pessoas, que as desigualdades sufoquem a vocação dos sujeitos que buscam a formação universitária.
O fim do vestibular não é o objetivo da proposta Universidade Nova, mas não há alternativa senão romper com esse paradigma. O vestibular será superado simplesmente porque não terá uso nem sentido em qualquer projeto de transformação radical da educação superior.
Será necessário implantar novas modalidades de processo seletivo, mas ainda não sabemos o que substituiria o vestibular.
Estamos avaliando opções de acesso nas seguintes etapas: a) ingresso ao Bacharelado Interdisciplinar (BI); b) seleção para as carreiras profissionais.
O modelo da Universidade Nova é, sem dúvida, mais inclusivo.
Primeiro, o projeto prevê um aumento substancial da oferta de vagas na educação superior, tanto no BI quanto nas licenciaturas. O BI poderá acolher sem problemas até o dobro das vagas destinadas aos cursos profissionais e de pós-graduação, com maior proporção aluno/docente.
Segundo, esperamos substancial redução nas taxas de evasão, pois as escolhas de carreira profissional serão feitas com maior maturidade e melhor conhecimento do conteúdo das respectivas formações.
Terceiro, a seleção para o BI será geral, diluindo a enorme competição normalmente concentrada em alguns cursos.
Além disso, há outra razão, não menos importante: para os BIs, selecionaremos candidatos por criatividade e talento, qualidades intelectuais e humanas melhor distribuídas socialmente e menos ligadas à influência da história socioeconômica das famílias e das pessoas.
Se conseguirmos cobrir no sistema público de educação superior a demanda reprimida, com sistemas de seleção que não discriminem por origem social ou étnica, haverá vagas, decerto não para todos os candidatos, mas para todos os que se apresentarem com motivação e vocação.
O projeto defende claramente que as instituições universitárias realizem internamente os processos seletivos para prosseguimento da formação acadêmica e profissional dos estudantes.
Não tem nenhuma lógica, política ou acadêmica, mantermos uma seleção por mérito, habilidade, competência, aptidão, fora da universidade. Ao permitirmos que processos seletivos aconteçam fora da instituição da cultura, das artes e do conhecimento, a seleção torna-se muito mais social e política do que por mérito.
Ao trazê-la para dentro, teremos maior controle acadêmico sobre a qualidade e a competência, valores que fazem parte da universidade. Isso nos leva ao tema das políticas de ações afirmativas.
No longo prazo, se todos os mecanismos de expansão e inclusão social funcionarem como esperamos, não vamos precisar de reserva de vagas para a Universidade Nova.
Ainda assim, até que tenhamos verificado serem desnecessários, defendo que devemos manter sistemas de compensação redistribuitiva de vagas (cotas para pobres, negros e índios), monitorando qualquer grau de exclusão ou discriminação.
Para continuidade da formação nos cursos profissionalizantes, alguns diriam que não seria mais preciso a salvaguarda de programas de ações afirmativas. Uma vez no BI, aparentemente as oportunidades estariam igualadas porque todos os alunos terão acesso garantido a recursos educacionais e apoio institucional na universidade.
Sinceramente, não creio nisso. A estrutura curricular e alguns elementos organizativos introduzem no BI um viés igualitário, que pode reduzir, mas não suprimir ou reparar, diferenças sociais ou étnicas de origem.
Mesmo se tornando mais eficiente e inclusiva, a instituição universitária dificilmente compensará o fato de que alguns alunos, vivendo em ambientes sofisticados e estimulantes, podem se dar ao luxo de apenas estudar, contando com recursos e suportes adicionais (por exemplo, contratando cursinhos de reforço), enquanto outros continuarão lidando com problemas econômicos, vivendo precariamente, trabalhando em paralelo ao curso universitário, sem livros, equipamentos e recursos pessoais.
O que é possível se fazer nesse sentido? Primeiro, reforçar os programas de permanência. A universidade pública brasileira avança numa concepção ampla de apoio social aos estudantes, com concessão de bolsas do setor público e do setor privado, principalmente fundações.
Essas bolsas, ainda escassas, dão conta apenas de uma parte do problema. A outra parte é a universidade que precisa se reestruturar para propiciar condições de aderência dos estudantes aos programas de ensino.
Por isso, queremos que os BIs ofereçam cursos por turnos-padrão (matutino, vespertino e noturno), com maior concentração de atividades no turno noturno, propiciando otimização de instalações e equipamentos de ensino.
Enfim, precisamos garantir condições de vida e disponibilizar recursos pedagógicos e financeiros para uma formação profissional plena na universidade pública. Mesmo assim, não podemos perder o foco do projeto.
Não queremos reparar ou remendar defeitos e problemas da educação superior, em suas diversas modalidades atualmente vigentes, mas sim buscar a transformação total e radical dessas estruturas e modalidades.
Nesse sentido, pelo menos na UFBA, o projeto Universidade Nova é uma conseqüência direta do sucesso do Programa de Ações Afirmativas.
* Naomar de Almeida Filho é reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).