A discussão sobre a falta de médicos para atuar na periferia das grandes cidades ou em municípios remotos, ambos carentes desses profissionais, vem mobilizando todos os administradores públicos, especialmente os prefeitos, que não conseguem contratá-los para o Programa Saúde da Família (PSF), mesmo oferecendo remuneração igual ou superior a R$ 10 mil mensais. A proposta de algumas importantes figuras da administração é ampliar a oferta de vagas pela abertura de novos cursos e, simultaneamente, importar médicos formados no exterior.

Mas nenhuma dessas propostas seria capaz de corrigir a demanda atual. Novos cursos só vão formar médicos após seis anos. Formar novos médicos no sistema atual significa considerar a residência médica indispensável. Porém o número de vagas para residência, apesar das 1.260 criadas recentemente pelo Ministério da Saúde, é ainda inferior ao número de graduandos. Também a residência médica existe apenas em grandes hospitais, que utilizam toda a moderna tecnologia. Desse modo, a residência médica forma especialistas e subespecialistas que não vão trabalhar com a população carente, mas agravar as distorções, indo atuar em áreas mais ricas e centrais das cidades.

Por outro lado, importar médicos envolve grande risco, desde que essa importação não seja feita de países onde o ensino médico prime pela qualidade.

Existe contingente significativo de alunos brasileiros buscando sua graduação em países onde há facilidade de ingresso e cujos cursos não formam o profissional com a qualidade mínima exigida. Uma vez formados, querem exercer a atividade no Brasil. A tentativa de acordos bilaterais reconhecendo automaticamente os diplomas tornou-se inviável, levando os Ministérios da Educação (MEC) e da Saúde a elaborar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeiras (Revalida), para uniformizar os critérios nas universidades federais encarregadas dessa revalidação. Uma proposta ouvida no MEC é de que tais profissionais poderiam trabalhar por dois anos, sob supervisão de tutores, e só depois prestar o exame para revalidação. Propõem até reduzir as exigências do Revalida para facilitar a aprovação, o que nos parece inadmissível.

Nenhuma dessas duas propostas, portanto, resolveria o nosso problema. Entendo que é o momento de propor um pré-requisito para a residência médica: cumprir dois anos no Programa Saúde da Família, supervisionado pela sua escola. Isso traria impacto de três ordens: fornecer o profissional para locais pouco atrativos, envolver a escola na assistência e reformar o ensino médico.

Diante da gravidade da situação em que nos encontramos, é ingênuo pensar que mantendo a situação atual se consiga corrigir as desigualdades. São necessárias medidas que podem ser consideradas radicais para mudar. Vivemos um tempo de mudança e o ensino médico deve mudar pensando na população desassistida, cuja condição precisa ser recuperada.

Parto do pressuposto de que nenhum país do mundo, mesmo gastando mais de US$ 7 mil per capita por ano, consegue oferecer a moderna tecnologia a todos indistintamente (assinale-se que gastamos menos de US$ 900 per capita). Mesmo porque 80% dos casos, que procuram o médico, podem ser tratados sem esses recursos, que, entretanto, devem ser postos à disposição de quem deles precisa.

Assim, o curso médico deve formar um profissional capaz de atender um paciente em situação de emergência e em situação eletiva, basicamente fazendo diagnóstico e orientando a terapêutica com base em história clínica detalhada e nos sinais obtidos pelo exame físico. Essa característica da Semiologia se está perdendo, já que é mais fácil lançar mão de exames de imagem.

Mas para o curso formar um profissional é preciso que se garanta um exercício da atividade onde, com esses pressupostos, ele poderia atuar. É necessário expor o recém-formado a atuar junto à população, supervisionado pela sua escola, antes de induzi-lo a escolher uma área de especialidade, o que, ao fim, é o que faz a residência médica.

De pouco adianta preparar esse médico se o enviarmos diretamente para a residência, que só existe em hospitais que detêm toda a tecnologia e onde se internam os 20% que necessitam dela. Antes de o curso preparar especialistas precoces, deve fazê-los atuar como médicos capazes de atender a população, sem usar a moderna tecnologia.

Além da supervisão pela sua escola, esses médicos devem contar com especialistas na área em que atuam e com possibilidade de leitos para eventuais internações, constituindo uma rede de serviços assistenciais. Para que a proposta se torne eficaz é ainda necessário corrigir a desigualdade na oferta de vagas.

Enquanto no Tocantins existe uma vaga para cada 4.068 habitantes e em Minas Gerais, uma para 6.665, em São Paulo há uma vaga para 13.193 e no Pará, uma para 19.456. Nas regionais de São Paulo a mesma desigualdade se verifica. Enquanto a regional de São José do Rio Preto tem uma vaga para 3.391 habitantes, a de Ribeirão Preto dispõe de uma para 4.712, a regional da Grande São Paulo conta com uma para 20.700 e a regional de São José dos Campos, uma para 28.957.

O médico recém-formado deve estar pronto, ao sair da escola, para trabalhar junto à população no PSF, por dois anos, como pré-requisito para buscar a residência médica. Assinale-se que quando eu cursei a Faculdade de Medicina, de 1948 a 1953, o curso era de seis anos. Hoje continua de seis anos, mas assistimos a uma avassaladora acumulação de conhecimento e tecnologia.

E o modelo deve abranger todos os recém-formados. Dessa forma, se tomarmos como parâmetro o último ano, em que mais de 13 mil médicos foram formados em dois anos, cobriríamos toda a demanda para uma área que não é atrativa, mas precisa ser atendida.


* Adib D. Jatene é cardiologista, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, diretor-geral do Hospital do Coração e foi ministro da Saúde.

** Originalmente publicado em O Estado de São Paulo


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